O operário aposentado Antonio Norival Soave, ex-militante da Ação  Popular (AP), morreu na madrugada de 5 de abril de 2011 no Hospital das  Clínicas de Porto Alegre e foi finalmente jogado para fora da ponte da  vida. 
 Seu corpo foi cremado. Mas os sonhos desse operário que viveu rebelde,  bêbado e equilibrista não serão queimados pelos antigos companheiros que  continuam acreditando na esperança, vermelha, socialista. 
 Ele estava com a vida por um fio, lutando e tentando ludibriar a morte.  Nos últimos sete meses, por conta de um tumor cancerígeno em um dos  pulmões, ele emagrecera mais de dez quilos e perdera toda a massa  muscular do lado esquerdo do corpo, pois o tumor inflamou, cresceu e  pressionava algumas vértebras junto à coluna cervical.  
 A biópsia comprovou que se tratava do tumor maligno carcinoma. E os  médicos que o atenderam disseram não ser recomendável cirurgia e sim  tratamento com rádio e quimioterapia, mas sem possibilidade de cura. 
 Quando ele ainda estava morando no ABC paulista falava com Soave por  telefone todos os dias e num domingo de setembro do ano passado fui até  Santo André, onde ele residia sozinho numa velha casa na rua Guadalupe  490, no bairro Parque das Nações, e constatei sua magreza esquelética,  sentindo muitas dores e com o braço esquerdo praticamente paralisado. Vi  um homem de 63 anos, mas que aparentava ter mais de 75, fragilizado  pela doença. 
 Na visita encontrei sua filha Semíramis e a neta Camile, de um ano e  meio de idade, que vieram de Porto Alegre dispostas a levar o pai e o  nono para a capital do Rio Grande do Sul e assim tentar tratá-lo da  terrível moléstia no Hospital das Clínicas gaúcho.  
 Por conta da sua aparência envelhecida, doente e pelas informações que  obtive com a filha e irmãs de Soave, fiquei com a certeza de que o  operário estava sem força física para prolongar o tempo que lhe foi  concedido nesta terra.  
 No Hospital das Clínicas de Porto Alegre ele foi tratado com  quimioterapia e radioterapia, até que os médicos identificaram que o  câncer se ramificara para o cérebro, onde surgiram outros dois tumores  malignos.   
 Um dos muitos personagens do livro que estou terminando de escrever  sobre a organização de esquerda Ação Popular, Antonio Norival Soave  nasceu em família operária, em Santo André, na região metropolitana  paulista, em 24 de agosto de 1947. É o único varão entre quatro irmãs –  Iracema, Aparecida, Tereza e Hilda -, filhos de José Soave e Roma  Carolina Fantanesi, já falecidos e descendentes de migrantes do norte da  Itália que vieram para o Brasil no final do século 19. 
 Em Santo André, a família Soave construiu os seus sonhos, primeiro  vendendo frutas, verduras e legumes em feiras livres, e depois com  macacões nas fábricas do ABC paulista, onde José Soave e Roma Carolina  tornaram-se operários e trabalharam quase quarenta anos nas caldeiras e  tecelagens de indústrias têxteis.  
 Da mesma forma que os pais operários, e morando em Santo André, no ABC  paulista, desde que nasceu, Antonio Norival Soave começou a trabalhar  ainda menino. Com apenas 11 anos já levantava às 3 horas da madrugada  para trabalhar na feira. Depois, já com 14 anos tornou-se operário na  linha de montagem da Pirelli, onde fazia moldes de colchões de espuma  látex. A empresa também produzia pneus, cabos, fios, entre outros  produtos. 
 Em 1 de abril de 1964 ele tinha 16 anos, quando o então presidente da  República, João Goulart, foi deposto pelo golpe civil-militar e  trabalhava na Cooperativa da Rhodia. Um ano depois foi demitido por  participar de greve por melhores salários, mas em seguida conseguiu  trabalho como preparador de máquinas na metalúrgica Cima (Companhia  Industrial de Materiais Automobilísticos) e se filiou no Sindicato dos  Metalúrgicos de Santo André.  
 A partir de 1966, além de atuar no movimento sindical, ele começou a  militar na organização política de esquerda Ação Popular, que também  atuava entre os operários no ABC paulista, com origem principalmente na  JUC (Juventude Universitária Católica), e tinha sido fundada em Salvador  (BA), em 1963.  
 A partir de 1966 é que ele foi entender melhor as coisas da política e a  mecânica da vida, suas leis e contradições. Ele viveu aquele momento do  Brasil da resistência ao golpe militar e em 1968 já estava trabalhando  como inspetor de qualidade na Chrysler do Brasil, em São Bernardo do  Campo, quando explodiram greves, manifestações estudantis e populares  contra a ditadura pelo país. Na Chrysler ele participou da organização  de paredes por melhores salários e melhores condições de trabalho. E  teve atuação destacada no Primeiro de Maio de 1968, na Praça da Sé. 
 Em Santo André, ele e seus camaradas começaram a organizar o primeiro de  maio de 1968 com uma passeata de 20 mil pessoas pelas ruas da cidade. E  depois alugaram vários ônibus para trazer os trabalhadores de São  Bernardo e de Santo André até a Praça da Sé, onde já estavam operários  de Osasco, de São Paulo e do interior paulista, além de muitos  estudantes.  
 Soave estava à frente dos operários da Mercedes Benz que romperam o  cerco dos agentes do DEOPS, na Praça da Sé, e ocuparam o palanque onde  estavam os representantes da ditadura, entre os quais o então governador  Abreu Sodré, seu Secretário de Finanças, Delfim Neto, e os pelegos das  diretorias do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e da Federação dos  Metalúrgicos, que tinham preparado uma comemoração oficial e festiva  para o regime militar.  
 No momento em que os operários ocuparam o palanque, pelegos e  representantes da ditadura saíram correndo, o microfone foi entregue ao  líder sindical da oposição e militante da AP José Nanci, que discursou e  denunciou o regime militar, conclamando o povo a enfrentá-lo, exigindo  democracia e liberdades democráticas, liberdade de atuação sindical e o  fim do arrocho salarial.  
 Depois os operários saíram em passeata, com milhares de pessoas, até a  Praça da República, onde o líder metalúrgico de São Bernardo do Campo,  José Barbosa, militante da AP e recentemente falecido, também discursou,  denunciando a ditadura.  
 A partir de então José Nanci, o operário José Barbosa, além de outros  sindicalistas de oposição e muitos de militantes da AP passaram a ser  perseguidos pela polícia política da ditadura. Ainda assim eles  conseguiram realizar greves na Chrysler, na Mercedes Benz, na  Volkswagen, na Wyllis Overland do Brasil que hoje é Ford, e em algumas  outras indústrias menores do ABC, onde a AP tinha atuação. 
 A repressão não tardou a chegar. No final daquele ano de 1968, quando a  ditadura baixou o Ato Institucional número 5, centenas de operários  foram sendo demitidos e perseguidos no ABC, a exemplo do que aconteceu  com Antonio Norival Soave, em janeiro de 1969, quando foi dispensado da  Chrysler por causa das lutas que ele e outros operários estavam levando  adiante. 
 O cerco da ditadura aos movimentos sindical e popular ficou ainda pior  com a nova Lei de Segurança Nacional que entrou em vigor em setembro de  1969, e depois que Emílio Garrastazu Médici foi escolhido para ser o  novo general-presidente da ditadura desde dezembro daquele ano. Além  disso, em maio de 1970, a famigerada Operação Bandeirantes, de São  Paulo, foi legalizada e passou a se chamar DOI-CODI. 
 Organizados em várias capitais brasileiras, os DOI-CODI se tornaram uma  espécie de campos de concentração, de tortura e assassinatos praticados  pelo regime militar e, junto com o Centro de Informações da Aeronáutica  (CISA), Centro Nacional de Informações da Marinha (CENIMAR) e Serviço de  Informação do Exército (CIEX) e os DEEOPS, estabelecem um regime ainda  mais sanguinário contra os brasileiros, contra as organizações políticas  de esquerda e os movimentos de oposição à ditadura.  
 Era o tempo do "milagre econômico" dos militares, que precisavam de um  Brasil sem resistência à nova etapa de brutal acumulação capitalista no  país. Um "milagre" baseado no arrocho dos salários dos operários, com o  aviltamento de suas condições de vida, com a retenção ao máximo da  mais-valia do trabalho produzido.  
 Depois de demitido da Chrysler, Antonio Norival Soave fez testes de  inspetor de qualidade na Volkswagen, passou com as notas mais altas,  passou nos testes da Wyllis Overland do Brasil, mas não foi admitido em  nenhuma delas porque havia uma lista negra entre as indústrias, que  perseguiam os operários que ousavam lutar. Muitas vezes ele chegou a  entrar na fila de emprego da Mercedes Benz, mas o chefe do departamento  de pessoal já o tinha identificado e sempre o mandava sair.  
 Apesar de toda a repressão, o operário e seus companheiros continuaram a  lutar e o preço disso foi a perseguição e prisão de centenas e centenas  de pessoas pela polícia política da ditadura. 
 Antonio Norival Soave estava entre elas e a sua prisão ocorreu em 20 de  outubro de 1973, quando foi seqüestrado por agentes do DOI-CODI, sob  armas, por volta das 19 horas, na rua Oratório, no bairro Parque das  Nações, em Santo André, próximo à casa dos seus pais. Naquele dia tinha  passado na casa da família, que estava sendo vigiada e não sabia. 
 Depois de imobilizado pelos agentes do Exército, foi colocado num carro e  levado para a rua Tutóia, onde funcionava uma delegacia de polícia do  estado de São Paulo e utilizado pelo DOI-CODI, também chamado de OBAN -  Operação Bandeirantes -, que aplicava os meios mais hediondos de tortura  para obter informações e liquidar a oposição ao regime militar.  
 Lá chegando, ele foi colocado em um compartimento debaixo de uma escada  que servia de depósito dos cavaletes usados na tortura do pau-de-arara.  Pouco tempo depois, foi retirado desse compartimento por dois  torturadores com tapas e socos e levado até a sala de torturas. 
 Sob o comando do "Capitão Ubirajara", chefe da equipe B da OBAN, e com a  permissão do então major do Exército, Carlos Alberto Brilhante Ustra,  comandante do DOI-CODI e conhecido como "o carniceiro da rua Tutóia",  ele foi colocado na "cadeira do dragão", onde ficou levando choques  elétricos nos dedos e braços. Em seguida, foi despido e colocado no  pau-de-arara onde por toda a noite os torturadores intercalavam socos e  pontapés, batiam com palmatória nas nádegas e aplicavam choques  elétricos nos testículos, pênis, anus, dedos das mãos e dos pés, na  garganta, língua, orelhas e no interior dos ouvidos, quando perfuraram  seus tímpanos.  
 No início da manhã, após dois desmaios, ele foi medicado por um médico  do Exército e levado para uma sala totalmente vedada e com iluminação  por 24 horas, lá ficando completamente isolado durante uns 40 dias, e  saindo somente para a sala de torturas.  
 Depois desse período, foi levado para a cela X 1, onde estavam outros  presos, e os interrogatórios e tortura psicológica continuaram. Em 29 de  novembro de 1973, conduziram-no para prestar o depoimento formal no  DEOPS e no mesmo dia trazido de volta para o DOI CODI, onde continuou  incomunicável até os dez primeiros dias do mês de dezembro daquele ano,  quando a sua prisão foi finalmente admitida e os torturadores permitiram  que sua família o visitasse.  
 Na segunda quinzena de dezembro de 1973, foi transferido com outros  companheiros para o presídio do Hipódromo, onde continuou preso sem  assistência médica, o que agravou o problema nos ouvidos perfurados  durante as torturas. 
 Somente em março de 1974 é que a ditadura encaminhou para a 1ª Auditoria  da 2ª Circunscrição Judiciária Militar a denúncia contra ele e outros  presos, acusados e processados por militância na organização política de  esquerda Ação Popular Marxista Leninista do Brasil.  
 Em 9 de abril daquele ano foi qualificado e interrogado na Auditoria  Militar, quando denunciou as torturas a que foi submetido, denunciou o  desaparecimento e assassinatos dos seus companheiros Paulo Stuart  Wright, José Carlos da Mata Machado e Gildo Macedo Lacerda, militantes  da Ação Popular, mortos pela ditadura de Emílio Garrastazu Médici. 
 Em agosto de 1974, no julgamento do tribunal militar, ele foi condenado a  dois anos de prisão e, portanto, reconduzido ao presídio do Hipódromo  para cumprir a pena, de onde foi transferido depois para a Casa de  Detenção de São Paulo (Carandiru), e mais adiante para o Presídio da  Justiça Militar Federal (Romão Gomes), que funcionava no interior do  Quartel da Polícia Militar do Estado de São Paulo, no bairro Barro  Branco. 
 Finalmente, na segunda quinzena de maio de 1975, após julgamento no  Superior Tribunal Militar (STM), que em sessão realizada em 16 de maio  de 1975 decidiu reduzir sua pena para 16 meses de reclusão, Soave foi  libertado depois de passar 19 meses na prisão, incluindo o período em  que esteve encarcerado e torturado no DOI-CODI.  
 Quando saiu da cadeia Antonio Norival Soave estava com uma perda  acentuada de audição, problema que foi relatado por mim na época em  carta dirigida ao advogado Hélio Navarro, em 13 de maio de 1975, que  denunciou o fato no STM e entregou a carta ao Congresso Nacional.  Posteriormente, em 1978, trecho da carta foi publicado pela revista  IstoÉ.  
 Depois de sair da prisão, Soave se apaixonou e casou com Nilce Azevedo  Cardoso, também ex-militante da AP, e mudou para Porto Alegre (RS), onde  tiveram dois filhos, Semíramis e Paulo.  
 Nesse período, Soave combateu com o povo brasileiro na luta da anistia,  pela volta do irmão do Henfil com tanta gente que saiu... Ainda atuou na  organização e fundação do Partido dos Trabalhadores e trabalhou no  jornal O Companheiro. 
 Mas o seu casamento com Nilce fracassou e, embora continuassem amigos e  solidários, eles se separaram. Morando sozinho em Porto Alegre, com  problemas de saúde, incluindo a perda de muitos dentes, deprimido e  praticamente sem amigos, Soave voltou para Santo André em 1997, foi  morar com seu pai José, que estava muito doente e com o mal de  Alzheimer. 
 Em junho de 1998, o operário sofreu um acidente quando pintava a casa,  teve o globo ocular esquerdo perfurado por uma faca e desde então estava  completamente cego de um olho e enxergando apenas 40% com o olho  direito, assim mesmo com ajuda de óculos e lente de contato. 
 De lá para cá o pai José terminou morrendo, velhinho, mas sempre  amparado e bem cuidado pelo filho e filhas até o instante final.  
 Mais uma vez morando sozinho, embora sempre visitado por suas irmãs,  pelos filhos Semíramis, Paulo e a ex-mulher Nilce, Antonio Norival Soave  ou Ernesto e Bento (nomes pelos quais seus amigos da AP o conheceram)  teve pneumonia e outros graves problemas de saúde. 
 Ernesto Soave sobrevivia materialmente com muitas dificuldades e contava  apenas com aposentadoria de pouco mais de um salário mínimo. Seu plano  de saúde era o SUS, a exemplo do que acontece com os brasileiros pobres,  a imensa maioria da população do Brasil privatizado. 
 Na verdade, Ernesto Soave vivia igual ao Bêbado e o Equilibrista, da  canção de João Bosco, Aldir Blanc e eternizada na voz de Elis Regina.  
 Mas o homem não desistia da caminhada, solitária, embora aos tropeços,  desequilibrando-se e lutando para não ser jogado fora da ponte da vida. 
 Retraído e solitário, política, pessoal e socialmente, ele sentia falta  dos velhos amigos, antigos camaradas e não conseguiu fazer novas  amizades para compartilhar alegrias, tristezas e dores inerentes à vida.   
 Mas esse bêbado equilibrista permanecia embriagado pelos sonhos  socialistas e teimava com teimosia vermelha no direito de sonhar.  
 E continuou sonhando até o dia em que tombou, seu sangue coalhou, ele dormiu para sempre e nunca mais vai acordar. 
 Viverá na eternidade e despertará apenas no derradeiro sonho, quando  estará mais uma vez com o macacão sujo de graxa, caminhando pelas  fábricas do ABC paulista e lutando com a sua gente contra a espoliação  capitalista, pela revolução socialista e libertação da sua classe.  
 Nesse derradeiro sonho, com certeza, Ernesto Soave lembrará aos seus  antigos camaradas, e aos que virão depois de nós, que os revolucionários  socialistas não podem perder a ternura jamais. Mas ainda assim esse  operário, que lutou e viveu com a mesma brandura e suavidade que  carregava no sobrenome, dizia que os revolucionários de ontem e de hoje  não podem se esquecer de que a vida dos pobres na sociedade capitalista é  dura, pesada.  
 Por isso mesmo, homens e mulheres precisam sonhar. Mas com a condição de  acreditar nos seus sonhos, de examinar atentamente a vida real e de  confrontar seus sonhos com a realidade. Aí, então, dizia o operário  rebelde, bêbado e equilibrista, mulheres e homens conseguirão finalmente  realizar as suas fantasias.
DEUS O ABENÇÔE ...... 


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