quarta-feira, 17 de julho de 2019

OS MUTANTES

Durante a segunda metade da década de 1960, o reinado dos Beatles e a posição da banda no topo do mundo fazia dos quatro cavaleiros de Liverpool seres quase inalcançáveis e imbatíveis. Talvez, porém, seus adversários mais fortes nessa competição invisível pelo título de melhor banda do mundo não fossem nem os Rolling Stones nem os Beach Boys, mas sim uma banda brasileira, formada por três jovens com idades ao redor dos 20 anos. Na mais importante década da história do Rock, os Mutantes parecem só perder em qualidade para os Beatles. E nesse ano de 2016 o surgimento da melhor banda de rock da história do Brasil completa 50 anos.
Os superlativos acima podem parecer exagerados, mas não são – empreste seus ouvidos e corações ao som da banda para perder qualquer dúvida. Não há, no entanto, imparcialidade nesse texto – somente a imensurável admiração e paixão pela obra dos Mutantes, muito mais importante do que a impossível objetividade. Esqueçamos o habitual complexo de vira-lata e subserviência ao estrangeiro, e não interessa o que pensam os yankees: Santos-Dumont inventou o avião, e os Mutantes são mais interessantes, inventivos e originais do que qualquer banda americana da década de 1960. Sorte dos ingleses que tiveram os Beatles, ou essa disputa também seria moleza.
Quando falamos aqui de Mutantes, trata-se da santíssima trindade formada por Rita Lee e os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias – o trio que deu vida e habitou a banda de 1966 até 1972, quando Rita foi expulsa para que os Mutantes se reencarnassem em uma banda de rock progressivo mais séria, técnica e muito menos interessante. As outras formações da banda, por melhores que tenham sido, não se comparam a esses seis anos de auge áureo.
Os Mutantes que mereceram ser chamados de gênios por Kurt Cobain (em um bilhete pessoal escrito a Arnaldo Baptista quando da passagem do Nirvana pelo Brasil, em 1993, depois que Kurt comprou todos os discos que encontrou) são a banda dos discos Os Mutantes (1968), Mutantes (1969), A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado (1970), Jardim Elétrico (1971) e Mutantes e Seus Cometas no País dos Baurets (1972). Quem não conhece algum desses discos, faça o favor a si mesmo de largar esse texto e ouvi-los agora.
Nesses cinco discos, tudo é brilhante, original e vibrante, sem pretensões banais, excessos inócuos ou emulações bobas de estilos estrangeiros. Technicolor, que teria sido o quarto disco da banda (gravado em 1970 em Paris, mas que acabou sendo lançado somente em 2000), é também uma obra-prima.
A banda vinha sendo formada desde 1964 pelos irmãos Dias Baptista, com elencos diversos e nomes estranhos. Em 1966, porém, conseguiram enfim gravar seu primeiro compacto simples (com as canções “Suicida” e “Apocalipse”, ainda batizados como O’Seis, e distantes da sonoridade tropicalista – que não chegaria a vender nem 200 cópias), e cristalizar enfim a formação do trio que viria a fazer de fato a história da banda.
Foi há 50 anos também que estrearam no programa O Pequeno Mundo de Ronnie Von, ainda como coadjuvantes – e ali a impressionante qualidade da banda começou a saltar aos ouvidos da cena musical de então. Rita Lee, seu carisma e talento, tinha 19 anos; Arnaldo regia o grupo aos 18; e Sérgio, que já impressionava pela técnica e a sonoridade original que ainda é capaz de tirar de sua guitarra, tinha apenas 16 anos.
Aos poucos outros elementos se juntaram à banda – outros mutantes, que viriam a se tornar essenciais para moldar sua sonoridade única: o primeiro deles foi Claudio César Dias Baptista, o irmão mais velho de Arnaldo e Sérgio, que fez parte das primeiras formações, mas preferiu seguir sua vocação como inventor, lutier e engenheiro de som. Foi Cláudio César quem criou e fabricou com as próprias mãos os instrumentos, pedais e os efeitos que tanto caracterizariam a estética mutante.
Dentre as mil invenções de Cláudio César, uma se destaca, carregando uma mitologia própria e um impressionante axioma que a define: a Régulus Raphael, guitarra que Cláudio fez para Sérgio, também conhecida como A Guitarra de Ouro, que, segundo seu criador, é nada menos que “a melhor guitarra do mundo”. Com sua forma inspirada nos lendários violinos Stradivarius, a Régulus traz componentes únicos, fabricados por Cláudio – como captadores especiais e efeitos eletrônicos próprios, incorporados ao corpo semi-acústico do instrumento.
Alguns detalhes, porém, diferenciavam a guitarra e criaram sua mitologia: o corpo e os botões folheados a ouro (evitando assim chiados e ruídos), os captadores diversos (captando separadamente o som de cada corda) e uma curiosa maldição, inscrita em uma placa, também folheada a ouro, aplicada no tampo do instrumento. A maldição da Régulus diz: “Que todo aquele que desrespeitar a integridade deste instrumento, procurar ou conseguir possuí-lo ilicitamente, ou que dele fizer comentários difamatórios, construir ou tentar construir uma cópia sua, não sendo seu legítimo criador, enfim, que não se mantiver na condição de mero observador submisso em relação ao mesmo, seja perseguido pelas forças do Mal até que a elas pertença total e eternamente. E que o instrumento retorne intacto a seu legítimo possuidor, indicado por aquele que o construiu”. Certa vez a guitarra foi de fato roubada e, misteriosamente, retornou às mãos de Sérgio, anos depois, cumprindo sua maldição.
O outro mutante honorário foi Rogério Duprat. Arranjador de todo o movimento tropicalista, Duprat foi não só o responsável pela elaboração da mistura de ritmos e elementos brasileiros com influências eruditas sobre o rock perfeito de que os Mutantes eram capazes (afirmando-se assim como uma espécie de George Martin tropical), como também quem sugeriu os Mutantes para gravarem com Gilberto Gil a canção “Domingo no Parque” – trazendo assim a banda para o efervescente núcleo tropicalista, instantes antes de sua ebulição revolucionária enfim explodir.
A transformação sonora que Caetano e Gil (ki bosta Comunista) propunham operar na cena musical brasileira se tornou mais quente, possível, charmosa e contundente com a chegada d’Os Mutantes, e a sonoridade e o repertório da banda se expandiram ao sentido amplo e rico que caracterizaria seu som depois que aderiram ao movimento tropicalista.
A obsessão dos Mutantes pelos Beatles serviu como base para a sonoridade da banda. Havia, no entanto, muito mais para se explorar do que a influência da musicalidade anglo-saxã – e a maravilha de viver em uma potência da música popular como é o Brasil (só comparável aos EUA em qualidade e quantidade) é justamente poder sempre descobrir, mesclar, acrescentar elementos e influências inéditas colhidas no quintal de casa.
Os Mutantes foram pioneiros em misturar o rock com ritmos e estilos brasileiros, abrindo as portas para que bandas como Novos Baianos, Secos & Molhados, Paralamas do Sucesso e Chico Science & Nação Zumbi operassem caminhos similares, a partir de outras influências e bases peculiares, mas também misturando influências estrangeiras com sonoridades tipicamente nacionais.
Além do assombroso talento, da graça e do charme dos três músicos – com destaque para o magnetismo e o carisma pessoal de Rita Lee, que a partir dos Mutantes jamais deixou de ser a estrela central do Rock no Brasil – os Mutantes possuíam um outro elemento verdadeiramente raro e especialmente difícil de ser conjugado na música sem tocar o ridículo ou o banal: a banda tinha humor.
Saber utilizar o humor em música sem que a graça se sobreponha ao sentido artístico de uma banda, e sem fazer daquele um som menor ou bobo é tarefa das mais árduas. O caso dos Mutantes é justamente o contrário: trata-se daquele deboche refinado, que só os mais inteligentes são capazes, no qual nós, ouvintes, nos sentimos cúmplices e, ao mesmo tempo, motivos do riso – e que só amplia ainda mais o sentido artístico dessa obra.
Das cornetas do Duprat, passando pelos efeitos criados por Cláudio César, os arranjos, a maneira de cantar, o sotaque, as roupas, a postura no palco – além, é claro, das letras e melodias das canções – tudo oferece esse refinamento crítico que o deboche é capaz de levantar.
Ou resta dúvida de que não só a sonoridade, mas a própria presença e atitude dos Mutantes aprofundaram ainda mais a performance e o sentido revolucionário da apresentação de “É Proibido Proibir”, no festival de 1968 (quando Caetano, tendo Os Mutantes como banda, proferiu seu famoso discurso, espécie de despedida do Tropicalismo, no qual pergunta se “é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder”, enquanto Os Mutantes, às gargalhadas, davam as costas para a plateia)?
E tudo isso, em pleno contexto da ditadura militar. É preciso muita coragem para se afirmar abertamente como o oposto de qualquer ditadura – o sentido da liberdade – dentro do contexto de um regime de exceção.
As brigas, fofocas, amores, dores, fracassos e o ocaso da banda na verdade interessam muito pouco – ficam para os colunistas sociais da música popular. O que importa aqui são os 50 anos da fundação da maior banda que o Brasil já viu – e uma das maiores do mundo.
Uma experiência estética e política que permanece dobrando o tempo, explodindo ouvidos e parindo revoluções musicais e pessoais, justificando a máxima dita por Caetano na época, como uma espécie de slogan no tempo sempre presente de uma banda que jamais terá fim: Os Mutantes são demais.
FONTE:
Vitor Paiva
Escritor, jornalista e músico, doutorando em literatura pela PUC-Rio, publica artigos, ensaios e reportagens. É autor dos livros Tudo Que Não é Cavalo, Boca Aberta, Só o Sol Sabe Sair de Cena e Dólar e outros amores.

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