Resenha de Fernando Barreto:
I am the Walrus 1967
Com “I am the walrus” estamos frente a um dos textos mais complexos e barrocos não só dos Beatles mais, de toda a música pop. Nela estão impressas todas as novas experiências e conhecimentos que, especialmente John, ia adquirindo. A marijuana e o LSD, junto com a nova amizade com Bob Dylan, tinham provocado uma mudança de consciência e, por conseguinte, as letras dos Beatles se tornaram mais complexas. Surrealismo e superposição de palavras associadas de forma muito livre e irracional, às vezes somente pelo seu valor fonético, como o próprio autor reconheceu:
“Em algumas das melhores composições, das mais delirantes, como “I am the walrus”, tem estrofes, como a primeira, que escrevi sem ter idéia alguma do que queria dizer. Tinha estas duas linhas na máquina de escrever, “I am here as you are here as we are all together”. Duas semanas depois escrevi mais duas linhas e quando vi as quatro juntas comecei a cantar como se fosse uma sirene de polícia e troquei “here” por “he” e “me”: ”I am he as you are he as you are me as we are all together”.
O ritmo de uma sirene e os demais elementos da letra sugere claramente alusões aos “inimigos da desordem pública”: “pigs from a gun”.
Porcos com asas e o titulo da canção nos levam à sua principal fonte de inspiração: Lewis Carrol.
No quarto capítulo de “Alice no País dos Espelhos” a personagem “Tweedledee” recita o poema “A Morsa e o Carpinteiro” no qual a morsa fala às ostras sobre como os “porcos astutamente voam” com o propósito de desviar a sua atenção para depois, poder comê-las ao mesmo tempo em que chora lágrimas de crocodilo, (um dos versos de “I am the Warlus” é “I´m crying”).
Diz o texto de Carrol:
- Choro por vocês! - gemia a morsa.
- quanta pena me causais! - seguia lamentando-se a morsa e entre lágrimas e soluços escolhia as ostras de maior tamanho.
“A Morsa e o Carpinteiro” como descrevi na minha interpretação de “Come Together”, é um poema muito conhecido da literatura inglesa e representa o apetite voraz dos políticos ingleses. Estas figuras tão conhecidas de nós brasileiros que derramam suas lágrimas pelos menos favorecidos enquanto dividem o fruto dos seus roubos. John parece identificar-se com a morsa: um rico e famoso ídolo pop, chorando pelos males da humanidade em sua mansão de milhões de libras.
Outra figura tomada de Carrol e sua Alice é sem dúvida “Humpty Dumpty”, o “homem ovo”, do capítulo seis do mesmo livro. Personagem também muito popular do universo infantil inglês, e que tem conotações políticas em seu uso adulto: um ovo que possui características humanas e que fica encima do muro, morrendo de medo de cair para um lado ou outro e em consequência se quebrar. Mais uma vez John se identifica com outro personagem, “I am the eggman”-diz, obrigado a ficar, naquele tempo, sem poder tomar partido de um lado ou de outro por causa da responsabilidade que a visibilidade da sua fama lhe dava.
Tudo isso não tem nada de estranho: John falou repetidas vezes que sua obra favorita, e que mais o havia influenciado era “Alice no País das Maravilhas”. Este livro é a segunda obra mais célebre na Inglaterra, depois da Bíblia. O livro de Carrol começa assim:
“Sob um ensolarado céu, uma barca desliza silenciosamente num sonho numa tarde de verão”.
E numa outra conhecidíssima letra de Lennon temos:
“Picture yourself in a boat on a river”.
Mas as complicações não acabam aqui. Outros elementos aparecem de forma mais obscura e que são indecifráveis para os nossos lusitanos ouvidos.
No final da canção ouvimos um dialogo entre dois homens e as suas vozes se perdem, às vezes, como numa emissora de radio mal sintonizada.
Os que falam se chamam Gloucester e Edgar: trata-se da sexta cena do quarto ato da peça “Rei Lear” de Sakespeare:
-Bom cavalheiro, quem sois?
-um homem muito pobre a quem os tropeços da fortuna têm amansado; que por parte das suas próprias aflições, conhecidas e experimentadas, aprendeu a compadecer-se com as alheias.
Neste ponto o dialogo é encoberto pela música para retornar pouco depois com mais um personagem, Oswald.
OSWALD: “Se quereis prosperar, dai-me sepultura e entrega a Edmund, conde de Gloucester, a carta que acharas sobre mim. Poderás encontrá-lo no acampamento bretão. Oh intempestiva morte! Oh morte!” (Morre).
EDGAR: “Conheço-te bem malvado oficioso, tão aferrado aos vícios da tua ama quanto à perversidade o pudera desejar”.
GLOUCESTER: “Como? Está morto?”
EDGAR: “Sentai-vos, pai, repousai”.
Nesta parte a música acaba abruptamente e a canção termina.
È difícil destilar as intenções de John em relação a “I am the Walrus”. Poderia tratar-se duma homenagem tripla a Lewis Carrol, Edgar Allan Poe, (citado na letra) e Edward Lear, três mitos da literatura e que contavam com grande admiração por parte de Lennon. “Paperback Writer” foi dedicada a E. Lear e os três aparecem na capa do álbum “Sgt. Pepper”. Também pode ser que os fragmentos de “Rei Lear” remitam a Shakespeare já que essa obra retrata como poucas a desorganização social, na qual até a verdade provem da boca dos loucos.
Com “I am the Warlus” as letras dos Beatles alcançam o cume duma sofisticação difícil de superar. Penso que a temática desta hermética letra trata de como todos nos, modernos cidadãos do pós-modernismo, somos hipócritas. Choramos e lamentamos a precária situação dos desfavorecidos pela fortuna, vitimas de sistemas e governos tirânicos, enquanto dormimos fofinhos nas nossas camas confortáveis, no doce balanço dos nossos aparelhos de ar-condicionado. Nós, lamurientas morsas e medrosos homens-ovo; criticamos os políticos ladrões enquanto compramos drogas e produtos piratas, financiando o crime organizado. Criticamos a falta de educação do “povo”, ao mesmo tempo em que fazemos “gatos” de luz, jogamos lixo pelas janelas e estacionamos nossos carros encima da calçada. Reclamamos da injusta divisão de riquezas e acumulamos trecos e geringonças inúteis que descartamos assim que nos enchemos delas. Entregamos os problemas sociais nas mãos da polícia ao invés de arregaçar as mangas e fazer cada um a sua parte. Queixamo-nos da violência doméstica e fazemos da cachaça um patrimônio nacional.
Com esta delirante superposição de imagens absurdas, o autor descreve o total caos em que tão orgulhosamente vivemos. Sempre admirei a honestidade de John Lennon ao colocar o dedo nas feridas que mais tentamos esconder, colocando-se, ele mesmo, como exemplo.
Com estas “explicações”, segue aqui a minha livre “tradução”.
No final transcrevi em inglês o trecho de Shakespeare para poder ser identificado em audição no final da canção.
(prefiro o termo “canção” ao de “música” por motivos óbvios, sei que os meus irmãos e irmãs, de espírito livre, entenderão).
I AM THE WALRUS (eu Sou a Morsa)
I am he as you are he and you are me
And we are all together.
See how they run like pigs from a gun
See how they fly. I´m crying.
Eu sou ele como vocês são ele como vocês são eu
E nós estamos todos juntos.
Vejam-nos correr como porcos disparados por um canhão; vejam como voam. Estou chorando.
Sitting on a cornflake, waiting for the van to come.
Sentado num floco de milho, esperando a ambulância do hospício.
Corporation T-shirt, stupid bloody Tuesday
Man you´ve been a naughty,
Boy you let your face grow long.
Camiseta da corporação, maldita terça-feira idiota,
Cara você foi um depravado
Garoto você se deixou entristecer.
I am the egg man oh, they are the egg men oh,
I am the walrus, GOO GOO G´JOOB!
Eu sou o homem-ovo, eles são os homens-ovo,
Eu sou a morsa, que cagada!
Mr. City policeman sitting preety little
Polliceman in a row.
See how they fly like lucy in the sky,
See how they run. I´m crying.
Senhor policia municipal, precioso agentezinho
Colocado numa fila.
Vejam como voam como “Lucy in the Sky”
Vejam como correm. Estou chorando.
Yellow matter custard, dripping from a dead dog´s eye.
Crabalocker fishwife, pornographic priestess,
Boy you´ve been a naughty, girl you let your knickers down.
Uma substancia amarela e cremosa goteja
Do olho dum cachorro morto.
Pescadora de molinete, sacerdotisa pornográfica,
Cara, você foi uma depravada
Você se deixou abaixar as calcinhas.
I am the egg man oh, they are the egg men oh,
I am the walrus, GOO GOO G´JOOB!
Eu sou o homem-ovo, eles são os homens-ovo,
Eu sou a morsa, que cagada!
Sitting in an English garden waiting for the sun.
If the sun don´t come you get a tan
From standing in the English rain.
Sentado em um jardim inglês esperando pelo sol,
Se o sol não vem você pega um bronzeado,
De pé debaixo da chuva inglesa.
I am the egg man oh, they are the egg men oh,
I am the walrus, GOO GOO G´JOOB!
Eu sou o homem-ovo, eles são os homens-ovo,
Eu sou a morsa, que cagada!
Expert texpert chocking smokers
Don´t you think the joker laughs at you?
Ho ho ho, hee hee hee, ha ha ha!
Especialista, têxtil-especialista, fumantes asfixiando-se
Não acham que o piadista ri de vocês?
Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk!
See how they smile,like pigs in a sty,
See how thei snied. I´m crying.
Vejam-nos rir, como porcos de um cortiço,
Vejam como riem maliciosos, estou chorando.
Semolina pilchards, climbing up the Eiffel Tower.
Elementary penguin singing Hare Krishna
Man you should have seen them
Kicking Edgar Allan Poe.
Sardinhas de angu, escalando a Torre Eiffel.
Pingüim elementar cantando Hare Krishna,
Cara, você precisava vê-los chutando o Edgar Allan Poe.
I am the egg man oh, they are the egg men oh,
I am the walrus, GOO GOO G´JOOB!
Eu sou o homem-ovo, eles são os homens-ovo,
Eu sou a morsa, que cagada!
Trecho de “Rei Lear” de Shakespeare ouvido no final da canção:
GLOUCESTER:
-Now good Sir, what are you?
EDGAR:
-A most poor man, made tame to Fortune´s blows who, by the art of known, and feeling sorrows, Am pregnant to good pity.
(aqui a música abafa o diálogo, que volta logo em seguida):
OSWALD:
-If ever thou wilt thrive, bury my body, and give the letters which thou find´st about me, to Edmund Earl of Gloucester: seek him out upon the English party. O untimely death, death…
(Dies)
EDGAR:
- I know thee well. A serviceable villain, as duteous to the vices of the Mistress, as badness would desire.
GLOUCESTER:
-What, is he dead?
EDGAR:
-Sit you down father: rest you.
Musicalmente a composição é bastante colorida, além da formação clássica da banda de, duas guitarras, baixo e bateria, temos um piano processado por algum truque de estúdio da época, mais um arranjo bem moderno de cordas, cortesia de George Martin (arranjador,produtor e cérebro teórico-musical por trás dos Beatles).
A música também conta com efeitos sonoros parecidos com os encontrados antes, em “Tomorrow Never Knows” do álbum “Revolver”. Tudo isso bem de acordo com os psicodélicos tempos que estavam começando e prenunciando o Rock Progressivo que viria mais tarde, no inicio dos anos setenta. Uma obra definitivamente futurística para a época (o álbum foi lançado em Dezembro de 1967), e que continua adiantada ainda em nosso século XXI, dado o imenso volume de lixo musical ao qual estamos submetidos nos dias de hoje.
Daqui em diante os Beatles abandonariam o surrealismo
lírico e musical voltando a suas raízes, ou seja, o Rock and
Roll básico.
Depois da complexidade de “Sgt. Pepper” e “Magical Mystery Tour” (de onde walrus saiu), os Beatles se dedicaram a um som mais agressivo, definido e pesado, com letras mais simples e diretas (mesmo banais), objetivo que alcançaram já no ano seguinte com o “Álbum Branco” e o compacto “Lady Madonna”.
Fernando Barreto
vai ae um cover da minha banda de 1999 pois o youTube tem vetado o som por direitos autorais
UTILIDADE PUBLICA: https://pt.wikipedia.org/wiki/Magical_Mystery_Tour
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