Chico foi um militante do politicamente incorreto, décadas antes do
surgimento desse conceito. Debochou de feios, de gays, de gente burra,
de pais de santo, e também de seus colegas de rádio e TV.
São muitas as maneiras possíveis para definir quem foi Chico Anysio. A
que menos faz justiça à abrangência de sua obra é o habitual
“humorista”. O termo “sociólogo do riso”, cunhado pelo jornal O Globo em
1973, é uma muito boa tentativa. Mas ainda é pobre para dar conta de um
talento multifacetado, que ao longo de 63 anos de carreira arrancou
gargalhadas de gerações de brasileiros pobres, remediados e ricos,
intelectuais e analfabetos. O cearense de Maranguape Francisco Anysio
Vianna de Oliveira Paula Filho, morto às 14h52m desta sexta-feira, aos
80 anos, foi um iconoclasta. Sua postura crítica não conhecia limites.
Seu humor espicaçou a ditadura militar e invadiu a democracia
denunciando a corrupção. Na galeria de tipos cômicos criados por ele, é
possível detectar vergonhas nacionais como o coronelismo, o populismo, o
analfabetismo. Mas sua obra não se limita a temas “sérios”.
Ao contrário. Chico foi um militante do politicamente incorreto,
décadas antes do surgimento desse conceito. Debochou de feios, de gays,
de gente burra, de pais de santo, e também de seus colegas de rádio e
TV. E passeou com desenvoltura por uma gama de personagens (209, de
acordo com seu site) que iam do humor mais sutil ao mais escrachado.
Chico Anysio estava afastado da TV Globo, onde só fazia participações
esparsas em Zorra Total, e não escondia sua mágoa. Mas o
ostracismo recente não lhe roubou um lugar único na história da TV:
nenhum outro expoente do humor – nem mesmo Jô Soares e Renato Aragão –
teve reinado mais longo e inconteste na emissora de maior audiência no
país. Por extensão, nenhum outro humorista exerceu tanta influência
sobre os brasileiros quanto Chico Anysio.
Chico Anysio estava internado desde o dia 5 de dezembro no hospital
Samaritano, no Rio. Ele chegou com infecção urinária. Recebeu alta no
dia 21 de dezembro de 2011, mas voltou a ser internado no dia seguinte
por causa de uma hemorragia intestinal. O quadro evoluiu para uma
pneumonia. A causa de sua morte foi uma parada respiratório e falência
múltipla dos órgãos, decorrente do choque séptico causado pela infecção
pulmonar.
No começo de 2011, Chico passou três meses hospitalizado por causa de
dores no peito. Na ocasião, ele foi submetido a uma angioplastia para
desobstrução de artéria, seguida de uma traqueostomia e uma endoscopia.
Personagens - Entre o começo dos anos 70 e a década de
90, ele criou personagens e bordões incorporados à memória do Brasil. O
deputado Justo Veríssimo (“Quero que pobre se exploda!”), o pai de
santo Painho (“Affe! Eu tô morta!), Pantaleão (“É mentira, Terta?”),
Bozó (“E-eu trabalho na Globo, tá legal?”) fazem parte dessa galeria,
composta também por Bento Carneiro, o vampiro brasileiro, o malandro
Azambuja, o boleiro atrapalhado Coalhada, o funcionário público Nazareno
e o Baiano, sátira dos músicos saídos da Bahia que fizeram sucesso nos
anos 1960 e 1970. Boa parte deles apresentada ao público entre 1973 e
1980, durante o programa, o primeiro de longa duração da carreira
televisiva de Chico que teve início em 1957 com o programa Noite de Gala, da TV Rio. Onze anos depois, em 1968, o humorista entraria para o elenco da Globo. Entre 1982 e 1990, ele apresentou o Chico Anysio Show.
Nenhum de seus personagens foi tão marcante e longevo quanto o
professor Raymundo, criado por Haroldo Barbosa na rádio Mayrink Veiga em
1950. Em vez de “E o salário, ó...”, que o marcou na TV Globo, o
catedrático terminava a atração com o bordão “Vai comendo, Raymundo.
Quem mandou tu vim do norte?”. Dali por diante, o personagem ficou sendo
dele. Barbosa lhe deu o direito de utilizá-lo onde e como quisesse. Na
Globo, o personagem, que participaria de diversos programas, estreou em
Balança, Mas Não Cai, dirigido por Lucio Mauro. No início, o mestre
submetia seus alunos a sabatinas. A partir de 1974, no Chico City,
passou a dar aulas. Mais adiante, em 1991, ganhou uma escola – a Escolinha do Professor Raimundo,
sucesso absoluto entre 1991 e 1992. Ali, foram revelados talentos como
Tom Cavalcante, e resgatados artistas da velha guarda, como Walter
d´Ávila (1911-1996). “Duas falas para cada um e estava resolvido”, dizia
Chico.
Nessa época, Chico Anysio era campeão incontestável de audiência. Mas
já começava a perder prestígio. Quando o assunto era o futuro do humor
na TV Globo, ele era considerado representante do velho humor, e não
mais conseguia impor seus pontos de vista à geração que surgiu e se
afirmou naquele período, como o pessoal da TV Pirata e do Casseta & Planeta.
Frustrado na expectativa de ocupar um cargo de supervisor de humor,
passou a se expressar de forma amarga e ressentida em relação à
emissora. "O diretor que exerce a função que almejei é o Guel Arraes",
declarou.
Início - A atuação como humorista começou em um show
de calouros – onde Chico imitou as vozes de 32 famosos, fazendo piada
com cada um, e ficou atrás apenas de Silvio Santos, que mais tarde viria
a ser o dono do canal SBT. Ganhou 150.000 réis, que se converteram em
uma bicicleta, entregue como presente para o irmão Zelito, sete anos
mais novo. O comediante passou a ganhar todos os programas de calouros
do Rio, e tornou-se convidado proibido nessas atrações. Ele seguiria
então para São Paulo, onde também venceria todos os desafios. Mais uma
vez vetado nos programas, chegou a pensar em ser advogado criminalista,
quando apareceu um teste para humorista da rádio Guanabara, onde Anysio
estrearia como comediante em 1949. “Perdi a minha chance de ser um
Tarcísio Meira”, brincou ele. Chico tinha 15 anos de idade quando se mudou para o Rio de Janeiro,
depois que a empresa de ônibus de seu pai faliu. Seu sonho era ser
jogador de futebol. Uma tarde, quando foi em casa buscar o par de tênis
que havia se esquecido de levar para uma partida com amigos, encontrou a
irmã Lupe saindo para um teste na rádio Guanabara. Ele deixou o futebol
de lado e seguiu com a irmã. Fez dois testes, um para rádio-ator e
outro para locutor. Foi aprovado em ambos. Artista completo, escrevia os
textos que interpretava. No rádio, além das estações Guanabara e da
Mayrink Veiga, o humorista trabalhou nas rádios Clube de Pernambuco e
Clube do Brasil. Também escreveu e atuou em cinema – com papéis em
chanchadas da Atlântida – e se aventurou pela literatura e pela pintura.
Seus últimos trabalhos, além de Zorra Total, foram em Malhação e Caminho das Índias. Na minissérie Dercy de Verdade, Chico virou personagem, e foi interpretado por seu filho Nizo Netto.
Chico Anysio deixa esposa, a empresária Malga Di Paula, sete filhos de
seis casamentos – entre eles o comediante Bruno Mazzeo, do casamento com
a ex-modelo e atriz Alcione Mazzeo, o adotivo André Lucas, e Rodrigo e
Vitória, da união com a ex-ministra Zélia Cardoso de Mello.