Poço de petróleo queima no Kuwait após a invasão do país por tropas iraquianas, em 1991
Beirute - A decisão do governo iraquiano de compensar cidadãos americanos que foram vítimas do ex-ditador Saddam Hussein em centenas de milhões de dólares causou revolta entre a população do Iraque. Os iraquianos argumentam que a invasão dos Estados Unidos trouxe muitos danos ao país sem que o governo americano indenizasse a população.
Ao todo, o governo do Iraque pagará um pacote no valor de US$ 400 milhões para resolver um impasse jurídico em que cidadãos americanos alegam que foram pegos de surpresa em meio à invasão do Kuwait, e usados como escudos humanos durante a Guerra do Golfo, em 1991, pelas forças armadas iraquianas ordenados pelo ex-presidente Saddam Hussein. Alguns alegaram que foram "torturados e submetidos a um trauma psicológico". Desde então, eles entraram com uma ação contra o governo iraquiano por compensação financeira.
No entanto, o pagamento aos americanos vem sendo alvo de uma polêmica no Iraque, com os jornais do país criticando o governo e os EUA por tirar dinheiro de um país que sofre com a pobreza entre sua população, resultado de anos de sanções e da invasão americana, em 2003.
"O povo iraquiano está chocado com a notícia de que seu governo fará um pagamento milionário em um tempo em que a maioria no Iraque luta para sair da pobreza e reconstruir suas vidas, destruídas pela guerra e a crise humanitária por causa da invasão liderada pelos EUA", disse um dos jornais.
Para o analista político independente Jumaa al-Atwani, o anúncio da indenização a cidadãos americanos soa como "uma piada de mau gosto". "É incrível que após anos de ocupação e destruição do Iraque, o povo iraquiano ainda tem que pagar dinheiro a pessoas de um país cujo governo trouxe tanto mal ao país", falou ele. O analista explica que centenas de iraquianos sofreram danos materiais e físicos por causa da presença militar americana, e que poucos recebram qualquer tipo de compensação. "As pessoas que tiveram braços e pernas amputados por causa de ações militares americanas, ou aquelas que tiveram suas propriedades destruídas, jamais viram qualquer indenizaçãos dos EUA".
Para ele, o Iraque não deveria ter concordado em pagar indenizações às vítimas americanas, já que o país perdeu muito mais por causa de "anos de sanções econômicas impostas pelos EUA e seus aliados e a invasão e ocupação do Iraque", salientou al-Atwani. Os militares americanos estabeleceram, durante a ocupação, um sistema de "gerência de consequências", para indenizar, rapidamente, cidadãos iraquianos por danos causados pelas ações militares.
A família de uma pessoa morta acidentalmente por tropas dos EUA receberia US$ 2,5 mil, a quantia máxima estabelecida para indenizações. Uma casa destruída teria a indenização em US$1,3 mil e uma porta danificada daria ao seu dono US$ 50. Mas segundo a mídia do país, os pagamentos eram difíceis de serem processados e as somas eram muito baixas e não cobriam os custos e sustento das famílias.
Para al-Atwani, os iraquianos não podem pagar pelos crimes cometidos por Saddam Hussein, já que o próprio governo americano declarava que o Iraque era refém de um ditador. "Os iraquinanos não têm culpa pois viviam em uma repressão. Mas ao invés disso, só viram sofrimento em suas vidas, seja nas mãos de Saddam ou dos americanos".
Obrigações internacionais
As autoridades iraquianas se mostraram reticentes na indenização aos americanos. De acordo com um comunicado do Ministério de Relações Exteriores, o acordo foi assinado e era necessário para ajudar o Iraque a conseguir que antigas sanções contra o antigo regime sejam retiradas pelas Nações Unidas (ONU).
Desde 1994, o Iraque já pagou US$ 30,15 bilhões em indenizações ao Kuwait por conta da invasão de 1990, e um adicional de US$ 22,3 bilhões ainda está pendente. O Iraque é obrigado a colocar 5% dos lucros com a venda de seu petróleo e gás em um fundo até que as reparações sejam atingidas.
"São fundos que o Iraque mal consegue juntar, se considerarmos o déficit no orçamento nacional e as imensas necessidades domésticas", disse Mudher Mohammad Saleh, conselheiro da presidência do Banco Central iraquiano. Mas segundo ele, pagar uma compensação aos americanos faz parte de um senso fiscal e ajudaria a prevenir que fundos iraquianos no exterior fossem congelados nos bancos.
"Através dessa indenização, nós estamos protegendo dinheiro iraquiano. Se não fizéssemos este pagamento e encerrássemos este caso, os EUA congelariam nosso dinheiro dentro do capítulo 7 das sanções da ONU", explicou Saleh.
Traumas
Mesmo com os argumentos legais do governo, o renomado psicoterapista Ammer Zubaidi falou por telefone ao Terra que uma indenização a cidadãos americanos era uma forma injusta de ignorar os traumas causados pelos EUA aos iraquianos.
"Somente o fato de que cidadãos dos EUA estão sendo compensados por traumas psicológicos é uma ofensa aos iraquianos que já sofreram os mais diversos tipos de abusos ao longo destes anos de ocupação americana", falou ele, que ajuda pacientes com traumas mentais da guerra, em Bagdá.
Zubaidi salientou que entende a posição do governo dos EUA por uma compensação a cidadãos seus que sofreram nas mãos de Saddam Hussein. "Eles (o governo americano) fizeram o que todos os governos devem fazer por seus povos".
"Mas eu quero agora ver meu governo fazer o mesmo. Se os americanos têm centenas de pessoas com trauma por causa do Iraque, o Iraque tem dezenas de milhares que sofrem por causa do que os EUA fizeram ao nosso país", enfatizou Zubaidi.
Ele explicou que o número de pacientes que chegam ao seu consultório não para de crescer, a maioria crianças que necessitam de ajuda e que não a tem. "Eu sugiro ao nosso governo que emita um conta com os valores de todos os estragos e a envie a Washington".